Sunday, September 13, 2009

mil quilômetros - prólogo I, 2ª versão

Minhas mãos suavam frio ao sair de casa naquela noite. O coração palpitava como nunca, acelerando-se mais e mais a cada instante em que me deparava mais próxima do momento em que vivenciaria minha história de ficção e a veria transformar-se na mais surreal das realidades. Confesso ainda que esperei meus pais dormirem e saí pelo telhado pra que eles não me deixassem de bode caso me vissem, e também pra poupar a eles e a mim mesma de mais uma daquelas brigas de gritar até arranhar a garganta. Não planejei nada disso, não tinha a menor noção de como seria, mas agora, vendo o mundo sorrir ao meu encontro como numa inexplicável epifania, sofro de uma gigantesca falta de ar enquanto caminho por largas avenidas iluminadas em direção à rodoviária. Todos esses caras que já cruzaram as ruas da minha vida, tão impressionantes quanto cadeiras de três pernas, haviam me transformado em uma garota completamente desinteressada por relacionamentos. Há tempos não me preocupava com isso, e já havia ignorado a possibilidade de encontrar alguém que realmente poderia vir a me acrescentar algum sentido, algum amor. Acabei por me transformar numa ermitã ou coisa que o valha. Na real, filosofar sobre isso seria como discutir escolhas religiosas de um fanático qualquer: não existiam duas alternativas. O cara que eu procurava simplesmente não vivia nesse mundo. E foi mais ou menos aí que ele apareceu com toda aquela compatibilidade pra cima de mim, com todo o bom gosto que uma só pessoa pode comportar, trazendo originalidade, naturalidade e uma incomensurável dose de dopamina pra dentro do meu peito, ao mesmo tempo em que quebrava e rasgava em mil pedaços todas as minhas certezas que um dia já tive sobre quem sou. Acabei então, por tomar a melhor decisão que já havia feito em 19 anos; já que eu estaria acabada de amor de qualquer forma, melhor me acabar dentro do melhor abraço que eu poderia pensar em receber ao invés de ficar em casa enfiada numa cadeira confortável e fingindo que o que preenche minha negação é pura sensatez, e não covardia. No duro, quem é que consegue ser feliz sem agir por impulso vez ou outra? Quem é que consegue permanecer indiferente ao dizer ‘não’ pra uma sede de proporções infinitas? Eu é que não me meto numa enrascada dessas, se é pra viver, que seja com riscos de sofrimento, mas que valha a pena. Quero tudo isso sem neuras e sem frustrações, tão natural quanto respirar ou dormir. Por isso e outras coisas mais, tratei de arrancar do meu caminho todo e qualquer sinal de retorno, porque eu não ousaria estragar minha única chance de conhecer a verdadeira felicidade personificada. Ao voltar desse breve devaneio notei que não sentia mais as mãos, nem pés, nem pernas... o frio me anestesiou por completo. E a ansiedade ou a dose exagerada de amor que meu peito não consegue comportar (ou ambas ou nenhuma delas) faziam com que meu estômago pedisse resgate. Meu velho relógio estraçalhado marcava agora meia noite e quinze e o terminal ainda era um turbilhão de pessoas, pra lá e pra cá, todas desesperadas por diferentes motivos, mas todas exatamente iguais. Encarar uma paisagem enfadonha como essa me aborreceria em pouco tempo; eu precisava de alguma distração, e rápido. Levantei-me do chão, joguei a mochila nas costas e sai em direção à lanchonete mais próxima, conferindo se os dois reais necessários para satisfazer meu âmbito imediato por coca-cola estavam no bolso do meu jeans ou se teria que abrir a mochila e demorar não sei quanto tempo pra encontrar dinheiro lá dentro. Achei dois e noventa e cinco, comprei minha coca e dois ou três drops de hortelã pra triturar com os dentes enquanto tentava acalmar os ânimos. Comecei a pensar quanto tempo demoraria, dentro da minha cabeça, até o amanhecer, e se ele já estaria aqui a esse ponto. São mil quilômetros e uns quebrados pra atrapalhar, é muito chão, é muita estrada. Torci para que ele estivesse bem e passando menos frio do que eu, torci mais ainda para que ele não se metesse em confusão no ímpeto de chegar aqui o quanto antes. ‘Merda. Se ao menos eu pudesse encurtar essa droga de distância ao invés de ficar aqui me afogando em coca-cola e pastilhas de hortelã, com todas essas pessoas fodidas me bisbilhotando pelo canto do olho enquanto fico encarando uma vitrine dessas lojas deprimentes e roendo as unhas desesperada’. Era só nisso que eu conseguia pensar, encurtar a distância, adiantar o relógio, te trazer pra perto. Espera aí... Alguém disse que não posso? Quanta idiotice, eu não preciso ficar aqui mofando! O tempo de espera que me agoniza pode começar a ser cortado ao meio agora mesmo, e é exatamente isso que vou fazer acontecer. Abri a mochila num impulso jubiloso e corri com as mãos geladas entre tudo que havia lá entro, numa buscar eterna pela droga do celular. Achei que fosse ter uma síncope ou morrer de uma vez enquanto esperava aquela tralha velha que parecia ter uns cinqüenta anos ligar. Acabei não morrendo afinal, e ainda deu pra clicar em ‘nova mensagem de texto’ e escrever freneticamente a loucura que iria fazer antes de a bateria acabar. ‘Que droga, amor, espero que você tenha pego o celular dessa vez’, pensei enquanto corria em busca da minha vida que estava prestes a começar.



[Daniella Moraes versionando Guilherme Amato]